Thursday, January 11, 2007

Nightawks at the dinner

Não sei se existe isto de que falo,
mas deixa-me reparar um pouco
no teu modo ternamente animal
de confundir palavras e sentimentos,
num quase-silêncio desabrigado e informe.

Um corpo serve para muito pouco,
desde os caprichos da libido às infecções urinárias.
Coisas às vezes parecidas
que disfarçamos com vinho e com uns restos de astúcia.
Não me ouças, se não quiseres.
Ainda não se perdeu o lume das mãos redondas
com que te despes a um canto,
singularmente igual ao que de ti recordo
num outro Inverno distante.
Deixemo-nos ficar esta noite,
enquanto Tom Waits nos volta a falar
de um camião chamado Phantom 309 ou de outra coisa qualquer,
singularmente igual - um pouco mais triste, talvez.
Não é isso que importa.

Também cada um de nós terá um dia de se despistar
ao encontro de alguma certeza irrisória e no entanto mortal.
Que o vinho não acabe, entretanto,
e que as canções não pereçam nesta noite cativa do lume mas friamente corrupta.
Só nos teus lábios posso encontrar os teus lábios.
Eis uma parva verdade a que por vezes regresso,
mais importante decerto do que a sagess de Verlaine
ou do que aquele velho bar onde dantes,
pelo fim da tarde, cumpríamos o amor.
Deixa lá, no exacto sítio da morte,
essa teimosa paixão que não morre nem finge viver.
Tudo isto é inútil, embora o empadão estivesse bom
e eu já não saiba sequer quantos anos passaram
desde que um ao outro oferecemos o engano e a miséria de um rosto.

O vinho depressa acabou,
e é entre os teus seios que agora adormeço,
como se houvesse um lugar.
Daqui a algumas horas esperar-nos-á, crudelíssimo,
o terror tépido de mais um domingo absolutamente dispensável.
Só então saberemos o que desta noite há-de a memória roubar.
Talvez um perfume a doer-lhe feliz,
ou as roucas onomatopéias de uma certeza insegura- do lado mais esquivo da morte.

Mas bastam-me para já as mãos redondas gentis que fazem chover o teu nome sobre as ruas desertas do meu coração.



Manuel de Freitas, em Os Infernos Artificiais

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