Monday, January 07, 2008

O Sexo dos Anjos

Ele chega em casa com o olhar angulado que tanto lhe é reconhecível. As mãos fecham a maçaneta, um pouco seguras, um tanto trêmulas. Ele vai andando observando tudo ao redor, como se achasse estranho aquele sofá de capa desarrumada, os copos jogados que formavam bolinhas de água embaixo, no vidro. Toda aquela parafernalha sórdida, suja, barata demais, colorida demais que afixiava as paredes descascadas e todos os vapores ali contidos.
Ela chega, afoita, abraça-o, beija-o desesperada. Coloca as mãos sobre o rosto dele e pega suas mãos que estão sujas de sangue. Sangue vermelho, textura quase de mentira mas o cheiro é de vivo, cheiro de entranha, de morte. Num gesto abrupto larga-o.
Ele tem mãos grandes, com dedos longos e as unhas quase da cor da pele, um pouco mais roseadas. As unhas são cortadas quase na carne e algumas, poucas, tem aquele preto por debaixo delas. Agora estavam todas iguais, uniformes, um balaio de pequenos formatos salientes no vermelho que escorria, um leve fluxo de igual, de mesmo, de totalidade. Pega aquelas mãos pesadas e coloca por entre os cabelos dela, delicadamente - um gesto quase tão delicado que não se poderia sentir o peso antagônico dos dedos e da culpa que agora carregavam - e os dois também se misturam no fluxo do vermelho-igual. Cabelos, unhas, mãos, todos vermelhos.
Ela se esquiva, grita um monte de palavras que ele parece não compreender pois vira a cabeça de lado devagar, fecha os olhos, abre, olha pra ela tão violentamente que ela se desconcerta. É toda vez assim, afinal. Ele se reaproxima, pega-a pela cintura e mancha o branco do vestido rodado. Ela faz que não, faz força até com os punhos e as mãos fechadas. Contrai o corpo contra o dele, querendo se soltar, ameaça-o, cospe-o na cara, morde, estapeia-o na face. Mas ele vai levantando o vestido rodado, vai apertando os joelhos dela como se fosse quebrá-los. Ela se rende, se ajoelha, se soltam.
Ele olha-a de cima com aquele olhar que beira o perigo. Um olhar que a ameaça, como se num piscar de olhos ele fosse agredí-la, voltar à insanidade, à bestialidade. Mas não pisca. Ela simula um medo quase inconscientemente; sabe que está a salvo do pesar dele, sabe que essa violência é pro mundo, é pra quem não tem cama e café pronto de manhã, beijo na testa e juras de amor.
Abraça-o pelos joelhos, beija-os encostando levemente os lábios sobre a pele fina. Olha pra cima. Ele bate na cara, empurra-a pro chão, rasga as vestes, enfia os dedos onde couberem enquanto ela geme e grita sorrindo. Aperta as frágeis costelas, os ossos finos dela, quase tira o ar dos pulmões - com medo, sopra um pouco de ar na boca vermelha dela e ela, em agradecimento, beija o nariz com ternura. Sufocados, agonizantes, felizes. Gozam por horas na carnalidade proibida de seus sexos. Não dá mais pra distinguir o bege da pele e o vermelho-igual que veio das ruas; são um amontoado vermelho de coisa viva com coisa morta, cheiro do que bate e do que foi impedido de bater.
Irão dormir abraçados por horas no chão da casa barata e alucinante. Afinal, não dá pra resistir ao cheiro de morte que ele sempre traz quando entra em casa.

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