Monday, April 07, 2008

Reich

Densidade febril. O suor encrustado na superfície áspera epitelial. A farda era o fardo: abotoava botão a botão sem sequer mover o olhar; mirava-o na parede branca, o queixo ereto, a postura firme, embora denunciasse ossos fora do eixo.
Os sapatos de gala eram botinas pretas com a ponta dura de aço; a gravata era a corrente que carregava no pescoço com algum santo provincial. Passa pelos quartos, pelo corredor sombreado e mofado, olha de soslaio o espelho grande de moldura acetinada. Já vai? Já. Vou.
Os resqúicios acendiam luzes. Tiros e carros e balés de corpos amontoados; carcaças e couraças rondadas por moscas; insanidade insalubre. Os contos de guerra contados pelo rodeio de vitória, com voz de derrota.
São Paulo, 2007. Os tanques transmutaram-se em ar condicionado, as celas em pequenas janelas múltiplas copiando-se, colando-se, copiosas nas verticais habitacionais. Empresariais. Os tiros de escapamento de motocicleta afogam as britadeiras. Implosões e construções. Andarilho de concreto. Estratégias pra atravessar a rua.
Sinalizadores de neon: Bingos. Máquinas e máquinas com alavancas que se empurra pra baixo. Limão, limão, cereja. Moedas, mais moedas. Limão, slogan, limão. Tilintar no bolso. Cereja, cereja, cereja. Multilhão de batuques de aço. O barulho de moedas calou, acessou os papéis, os cartões, os de crédito, assinou, fez contas com os lábios quietos, assinou.
Volta para o apartamento pelos cantos. As luzes acendem-se conforme percebem sua presença, apagam na ausência. Detectores de movimento. As dívidas comeram os móveis, as jóias, o dinheiro no pé de meia dentro da gaveta. Chegou? Está com fome? Já. Estou. Te vi. Na tv. Um batalhão de soldados enfileirados. Estava de capacete, né? Eu vi. É. Onde é que é que vocês lutam? Luta, é luta. É gente contra gente. Sacolas e sacolas de roupas, louças, pratarias, mais jóias. Comprei. Vai vir uma medalha de honra, né? Quem vai pra guerra ganha indenização? Não sei. Acho que é. Ainda bem que você tá vivo.
A fluorescência da lâmpada comprida de cozinha espalha o ar. A cozinha é fria porque os azulejos gelam - como pisar no chão descalço. Desabotoa, alinha a roupa, põe a pasta na escova com cerdas violadas e estrias no cabo. O barulho é abafado, a boca está fechada. A luz da sala é luz azul que tremilica - luz de tv. O colchão do quarto tem molas e vísceras expostas de pelúcia, por entre os losangos de costura.

Senta, procura por Deus na mobília. Deita-se e dorme.

1 Comments:

Blogger Ligia Carrasco said...

me faz pensar numa música:


" so when you let me in, let me justify my only war "



não sei se entendo tudo, mas gosto de ler.

2:02 PM  

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