Tuesday, January 22, 2008

Fragmentos? [em 3ª pessoa]

Súbito, o acaso. Casa comigo? ele quis dizer quando olhava pra ela meio de lado, deitados no chão. Vou sentir saudade foi o que de fato disse. Afoitos, acasaram-se na certeza do sólido: algo como o mítico diálogo por olhares que ambos criam ser algo único que os outros não entendiam. Passa a cerveja, em meio a risos e desconexões. Quando a comunicação se estendia a mais do que somente dois, inventavam onomatopéias ou saíam gritando pela sala, pra fazer graça, tirar o foco. Eram apenas corpos que se contorciam de riso com a cabeça inclinada na almofada de polígonos pretos e brancos. Simpatia pra conseguir homem, sabe como é que é? Cócegas dos dedos leves dela na barriga morna dele. Pega um bife e enfia, sabe, enfia. Depois frita e dá pra ele comer. Enquadravam-se em colorido. Uma amiga me disse que contaram pra ela. Não vou te deixar ir, ela tentou - esta noite. Engoliu o pra sempre e riu enquanto ele zombava da moral cristã. Sacrilégios na cama de lençol por baixo do cobertor, que ela achou bonitinho e ele explicou que a textura, sabe, a textura fica melhor. A textura das palavras quentes rebatiam as costas na parede fria. Espirram, espirram-se pra fora da cama pra ele poder trabalhar. Isso depois de folhear o calhamaço do processo do cliente dele. Ela não sabe usar o português, coloca vírgula entre predicado e sujeito. Sujeita-se à vírgula dele. Procura travessões, aspas, só acha neologismo, erro gramatical. Não sabe conjugar alguns verbos ou às vezes esquece, propositadamente, pra parecer mais distraída do que de fato é, dá um charme, uma fluidez. Fluem escapismos. Procura no canal algum desenho enquanto ouve o barulho do chuveiro. Chove solidão. Molha as lembranças. Alaga de saudade o pequeno cômodo cheio de cartões na parede. Fica, ela balbucia sem som. Não me deixa ir, então, ela ensaia. Te levo lá embaixo, ele diz. Entrelaçam as cinturas no elevador. Reflexo que não fitam. Fixam na retina, colam as testas, apertam as mãos. Vou tentar escapar na sexta pra te ver. vai a pé? não, pega o metrô. não posso te levar, cê sabe. tá com fome? cê nunca tem fome. eu te ligo. vou tentar voltar. pego o trem. sabe como é, minha mãe quer se despedir. não tenho mais motivos pra ficar aqui. não que você não seja. entende, né? Sorri frágil e guarda o adeus no esôfago. Tô com gastrite. Deve ser o cigarro. linda! Ela sorri amargo e guarda o adeus nas mãos aflitas. Vou, então. Se cuida. Se cuida você também. Bom trabalho. Bons estudos. Tô atrasada nos livros..Vida bôemia. hahaha, hahaha, o mundo não entende, não é? Entende o quê? Que a gente devia funcionar de noite e dormir de dia. Então dorme bem. Casa comigo, ele quis dizer. Bom dia. 

Saturday, January 12, 2008

Semitons

Olhei pra varanda. Entrava por entre o vidro riscado uma luz. Branca, branquinha. Iluminava as cadeiras despenteadas, as roupas jogadas de alguma noite anterior. Noite dessas, escura, em que se pede amor em sussurros aos amigos que esquecem a tua face em detrimento de uma mão dentro de suas roupas.
Luz branca que entrava! Na certa, a lua. Redonda, gigante, esburacada. Não a via, mas embora só visse a luz branquinha, podia descrevê-la com exatidão: Redonda, gigante, esburacada. Ao redor umas estrelinhas meio ofuscadas pela imensidão; lua presa no céu, quase como foto no mural, lembrança na memória, dor pregada no estômago. Invadia os côncavos dos objetos espalhados pelo chão, cada um com sua história e carinho. Porque homem é bicho estranho que precisa das coisas pra lembrar dos fatos, precisa esfacelar o porta-retrato pra esquecer da imagem da foto que foi quase marcada com fogo no tecido fino no cérebro.
Fiquei parada ali, hipnotizada pela luz refratada pelo vidro.. Quase formava um arco-íris, dependendo do lado que olhava ou como mexia a cabeça. O resto eram degradês de branco ao cinza e as gotinhas brilhantes grudadas. Iam secar dia menos dia. Mas sempre chove de novo em São Paulo - morre gota, nasce gota - quase desesperadamente.
A luz foi murchando, de repente. Eu, meio acordada meio sonhando, acordei de súbito e andei em passos rápidos quase que tentando alcançar a luz que ia embora. Estiquei os dedos até o último fiapo, me joguei no chão, contraí a sobrancelha numa careta de quem se esforça, alonguei, quase gemi baixinho, mas se foi. A luz, branquinha, branquinha.. iluminou a noite anterior e trouxe à consciência as dores que penei pra esquecer com doses múltiplas de algum drink barato, cujo odor ainda pulsava nos ladrilhos do chão. Luz da lua que, embora fingisse, sabia bem: era só a luz da janela da frente.

Monday, January 07, 2008

O Sexo dos Anjos

Ele chega em casa com o olhar angulado que tanto lhe é reconhecível. As mãos fecham a maçaneta, um pouco seguras, um tanto trêmulas. Ele vai andando observando tudo ao redor, como se achasse estranho aquele sofá de capa desarrumada, os copos jogados que formavam bolinhas de água embaixo, no vidro. Toda aquela parafernalha sórdida, suja, barata demais, colorida demais que afixiava as paredes descascadas e todos os vapores ali contidos.
Ela chega, afoita, abraça-o, beija-o desesperada. Coloca as mãos sobre o rosto dele e pega suas mãos que estão sujas de sangue. Sangue vermelho, textura quase de mentira mas o cheiro é de vivo, cheiro de entranha, de morte. Num gesto abrupto larga-o.
Ele tem mãos grandes, com dedos longos e as unhas quase da cor da pele, um pouco mais roseadas. As unhas são cortadas quase na carne e algumas, poucas, tem aquele preto por debaixo delas. Agora estavam todas iguais, uniformes, um balaio de pequenos formatos salientes no vermelho que escorria, um leve fluxo de igual, de mesmo, de totalidade. Pega aquelas mãos pesadas e coloca por entre os cabelos dela, delicadamente - um gesto quase tão delicado que não se poderia sentir o peso antagônico dos dedos e da culpa que agora carregavam - e os dois também se misturam no fluxo do vermelho-igual. Cabelos, unhas, mãos, todos vermelhos.
Ela se esquiva, grita um monte de palavras que ele parece não compreender pois vira a cabeça de lado devagar, fecha os olhos, abre, olha pra ela tão violentamente que ela se desconcerta. É toda vez assim, afinal. Ele se reaproxima, pega-a pela cintura e mancha o branco do vestido rodado. Ela faz que não, faz força até com os punhos e as mãos fechadas. Contrai o corpo contra o dele, querendo se soltar, ameaça-o, cospe-o na cara, morde, estapeia-o na face. Mas ele vai levantando o vestido rodado, vai apertando os joelhos dela como se fosse quebrá-los. Ela se rende, se ajoelha, se soltam.
Ele olha-a de cima com aquele olhar que beira o perigo. Um olhar que a ameaça, como se num piscar de olhos ele fosse agredí-la, voltar à insanidade, à bestialidade. Mas não pisca. Ela simula um medo quase inconscientemente; sabe que está a salvo do pesar dele, sabe que essa violência é pro mundo, é pra quem não tem cama e café pronto de manhã, beijo na testa e juras de amor.
Abraça-o pelos joelhos, beija-os encostando levemente os lábios sobre a pele fina. Olha pra cima. Ele bate na cara, empurra-a pro chão, rasga as vestes, enfia os dedos onde couberem enquanto ela geme e grita sorrindo. Aperta as frágeis costelas, os ossos finos dela, quase tira o ar dos pulmões - com medo, sopra um pouco de ar na boca vermelha dela e ela, em agradecimento, beija o nariz com ternura. Sufocados, agonizantes, felizes. Gozam por horas na carnalidade proibida de seus sexos. Não dá mais pra distinguir o bege da pele e o vermelho-igual que veio das ruas; são um amontoado vermelho de coisa viva com coisa morta, cheiro do que bate e do que foi impedido de bater.
Irão dormir abraçados por horas no chão da casa barata e alucinante. Afinal, não dá pra resistir ao cheiro de morte que ele sempre traz quando entra em casa.